domingo, 27 de dezembro de 2009

Terceira Pregação


Terceira pregação de Advento a Bento XVI e à Cúria Romana

Maria, mãe e modelo do sacerdote

Na carta a todos os sacerdotes com ocasião da Quinta-Feira Santa de 1979, a primeira da série do seu pontificado, João Paulo II escreveu: "Há no nosso sacerdócio «ministerial» a dimensão estupenda e penetrante da proximidade da Mãe de Cristo". Nesta última meditação do Advento, gostaríamos de refletir precisamente sobre esta proximidade entre Maria e o sacerdote.

De Maria não se fala com muita frequência no Novo Testamento. No entanto, se prestarmos atenção, notamos que ela não está ausente em nenhum dos três momentos constitutivos do mistério cristão, que são: a Encarnação, o Mistério Pascal e o Pentecostes. Maria estava presente na Encarnação, porque ocorreu nela, estava presente no mistério pascal, porque está escrito que: "perto da cruz de Jesus estava Maria sua mãe" (cf. Jo 19, 25); esteve presente no dia de Pentecostes, pois está escrito que os apóstolos "perseveravam na oração em comum, junto com algumas mulheres — entre elas, Maria, mãe de Jesus" (Cf. At 1, 14).

Cada uma destas três presenças revela algo da misteriosa proximidade entre Maria e o sacerdote, mas encontrando-nos na iminência do Natal, gostaria de limitar-me à primeira delas, aquilo que Maria diz do sacerdote e ao sacerdote no mistério da Encarnação.

1. Qual a relação entre Maria e o sacerdote?

Quero primeiramente mencionar a questão do título de sacerdote atribuído à Virgem na tradição. Um escritor do fim do século V chama Maria "Virgem e ao mesmo tempo sacerdote e altar onde se deu Cristo pão do céu para a remissão dos pecados" [1]. Depois dele, são frequentes as referências ao tema de Maria sacerdote, que tornou-se o objeto da observação teológico somente no século XVII, a escola francesa de São Sulpício. Nessa, o sacerdócio de Maria não se colocou tanto em relação com o sacerdócio ministerial como com o de Cristo.

No final do século XIX, espalhou-se uma verdadeira devoção à Virgem-sacerdote e São Pio X concedeu uma indulgência também à relativa prática. Mas quando se viu o perigo de confundir o sacerdócio de Maria com o ministerial, o Magistério da Igreja tornou-se reticente, e dois discursos do Santo Ofício colocaram praticamente fim a tal devoção [2].

Depois o Concílio continua a falar do sacerdócio de Maria, mas não vinculando-o ao sacerdócio ministerial, nem àquele supremo de Cristo, mas ao sacerdócio universal dos fiéis: ela possuía a título pessoal, como figura e primícias da Igreja, "o sacerdócio régio"(1 Pe 2, 9) que todos os batizados possuem a título coletivo.

Que podemos dizer dessa longa tradição que associa Maria ao sacerdote e da proximidade da qual fala João Paulo II? Continua a ser, ao meu ver, a analogia ou a correspondência dos planos, no interior do mistério da salvação. Aquilo que Maria foi no nível da realidade histórica, de uma vez por todas, o sacerdote o é cada vez que retorna ao plano da realidade sacramental.

Nesse sentido, podemos compreender as palavras de Paulo VI: "Qual é a relação e quais as distinções que há entre a maternidade de Maria, feita universal pela dignidade e caridade da posição atribuída por Deus no plano da Redenção, e o sacerdócio apostólico, constituído pelo Senhor para ser instrumento de comunicação entre Deus e os homens?

Maria dá Cristo à humanidade; e também o sacerdócio da Cristo à humanidade, mas de um modo diverso, como é claro; Maria mediante a Encarnação e mediante a efusão da graça, da que Deus a preencheu; o Sacerdócio através do poder da Ordem sacra [3].

A analogia entre Maria e o sacerdote pode-se exprimir assim. Maria, pela obra do Espírito Santo, concebeu Cristo e, depois dê-lo nutrido e alimentado em seu seio, deu-o à luz em Belém; o sacerdote, ungido e consagrado pelo Espírito Santo na ordenação, é chamado também ele a preencher-se de Cristo para poder dá-lo à luz e fazê-lo nascer nas almas através do anúncio da Palavra, da administração dos sacramentos.

Nesse sentido, a relação entre Maria e o sacerdote tem uma longa tradição atrás de si, muito mais autorizada do que a de Maria-sacerdote. Tomando um pensamento de Agostinho, o Concílio Vaticano II escreve: "a Igreja... toma-se também, ela própria, mãe, pela fiel recepção da palavra de Deus: efectivamente, pela pregação e pelo Baptismo, gera, para vida nova e imortal, os filhos concebidos por ação do Espírito Santo e nascidos de Deus" [5].

O batistério, diziam os Padres, é o seio no qual a Igreja dá à luz os seus filhos e a Palavra de Deus é o leite puro que os alimenta: "O pródigo místico! Um é o Pai de todos, um também o Verbo de todos, um e idêntico por todas as partes é o Espírito Santo e única é a Virgem Mãe: assim eu amo chamar a Igreja. Pura como uma virgem, amável como uma mãe, reunindo os seus filhos, alimenta-os com o leite sagrado que é a palavra às crianças depois do nascimento (cf. 1 Pd 2, 2) [6].

O beato Isaac de Estella, em uma página que lemos no ofício de leitura de sábado passado, fez uma síntese desta tradição: "Maria e a Igreja, escreve, são uma mãe e muitas mães, uma virgem e muitas virgens. Uma e outra mãe, Uma e outra virgem. Uma e outra concebida sem concupiscência pelo próprio Espírito; uma e outra dão a Deus Pai a prole sem pecado. Aquela, sem pecado algum, deu ao corpo a Cabeça; esta, na remissão de todos os pecados, dá o corpo à Cabeça" [7].

O que é dito nesses textos se diz da Igreja como um todo, como sacramento de salvação, deve-se aplicar de uma forma especial aos sacerdotes, porque, ministerialmente, são estes que, na prática, geram Cristo nas almas mediante a palavra e os sacramentos.

2. Maria acreditou

Até agora, a analogia entre Maria e o sacerdote esteve sobre o plano, por assim dizer, objetivo, ou graça. Mas há também uma analogia no plano subjetivo, ou seja, entre a contribuição pessoal que a Virgem deu à graça da eleição e a contribuição que o sacerdote é chamado a dar à graça da ordenação. Nenhum dos dois é um mero canal, que deixa passar a graça sem contribuir nada próprio.

Tertuliano fala de uma versão do docetismo gnóstico, segundo a qual Jesus nasceu, sim, de Maria, mas não concebido nela ou por ela; o corpo de Cristo, vindo do céu, teria passado pela Virgem, mas não gerado nela ou por ela; Maria teria sido um caminho para Jesus, não uma mãe, e Jesus para Maria um hóspede, e não um filho [8]. Para não se repetir essa forma de docentismo na sua vida, o sacerdote não pode limitar-se a transmitir aos outros um Cristo aprendido dos livros que não se fez primeiro carne da sua carne e sangue do seu sangue. Como Maria (a imagem é de São Bernardo), eles devem ser um reservatório que transborda do que está preenchido, não um canal que se limita a fazer passar água sem reter nada.

A contribuição pessoal, comum a Maria e ao sacerdote, resume-se na fé. Maria, escreve Agostinho, "pela fé concebeu e pela fé deu à luz" (fide concepit, fide peperit) [9]; também o sacerdote, pela fé leva Cristo em seu coração e mediante a fé o comunica aos demais. Será o centro da meditação de hoje: que o sacerdote pode aprender da fé de Maria.

Quando Maria foi visitar Isabel, esta a acolheu com grande alegria, e "cheia do Espírito Santo" exclamou: "feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido!" (Lc 1, 45). Não há dúvida de que este ter acreditado refere-se à resposta de Maria ao anjo: "Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a sua palavra" (Lc 1, 38).

À primeira vista, parece que o ato de fé de Maria foi fácil, inclusive evidente. Converter-se em mãe de um rei que teria reinado para sempre sobre a casa de Jacó, mãe do Messias! Não era o que sonhava toda jovem judia? Mas este é um modo de pensar sumamente humano, carnal. Maria encontra-se em solidão total. A quem pode contar o que aconteceu com ela? Quem acreditará quando disser que o menino que leva no seu seio é "obra do Espírito Santo"? Isso não havia sucedido a ninguém antes e não acontecerá tampouco depois. Maria conhecia certamente o que estava escrito no livro da lei, quer dizer, que se a jovem, no momento do casamento, não era virgem, devia ser expulsa pela porta da casa do pai e apedrejada pelas pessoas do povoado (Cf. Deuteronômio 22, 20 s). Nós falamos de diariamente do risco da fé, entendendo por isso geralmente o risco intelectual, mas no caso de Maria tratava-se de um risco real!

Carlo Carretto, em seu livreto sobre a Virgem, conta como chegou a descobrir a fé de Maria. Quando vivia no deserto, tinha sabido por alguns amigos tuaregs que uma jovem do acampamento tinha sido dada como prometida a um jovem, mas que não tinha ido viver com ele, pois era muito jovem. Relacionou este fato com o que Lucas diz sobre Maria. Por este motivo, ao regressar depois de dois anos por aquele acampamento, perguntou pela jovem. Constatou um certo mal-estar entre seus interlocutores e, depois, um deles, aproximando-se, fez-lhe um sinal: passou a mão na garganta com um gesto característico dos árabes quando querem dizer: "vão lhe cortar a cabeça". Estava grávida antes do casamento e a honra da família exigia acabar com ela. Então voltou a pensar em Maria, nos olhares sem piedade das pessoas de Nazaré, compreendeu a solidão de Maria, e nessa mesma noite a escolheu como companheira de viagem e como mestra de sua fé [10].

Deus não tira nunca de suas criaturas seu consentimento, escondendo-lhes as consequências, o que terão de enfrentar. Vemos isso em todos os chamados de Deus. Jeremias preanuncia, "te farão a guerra" (1, 19), e diz-se a Ananis sobre Saulo "pois eu vou lhe mostrar o quanto ele deve sofrer pelo meu nome" (At 9, 16). Poderia atuar de outra maneira com Maria, com uma missão como a dela? Com a luz do Espírito Santo, que acompanha o chamado de Deus, certamente vislumbrou que seu caminho não seria diferente do restante dos que são chamados. De fato, Simeão muito rápido expressará este pressentimento, quando lhe dirá que uma espada atravessaria sua alma.

Um escritor moderno, Erri De Luca, descreveu de maneira poética este pensamento de Maria no momento do nascimento de Jesus. Está sozinha, na gruta; José vela do lado de fora (segundo a lei, nenhum homem pode assistir ao parto). Acaba de dar à luz seu filho, quando curiosos pensamentos se amontoam em sua mente: "Por que, filho meu, nasces precisamente aqui, em Bet-Lehem, Casa do Pão? E por que temos de chamar-te de Ieshu?... Faz que este estremecimento da coluna vertebral, este calafrio do futuro fique longe dele". A mãe pressagia que o filho será arrebatado, então diz a si mesma: "Até a primeira luz, Ieshu é só meu. Quero cantar uma canção com estas três palavras e basta. Esta noite, aqui em Bet Lehem, é só meu". E com estas palavras aproxima-o do peito para amamentá-lo [11].

Maria é a única que acreditou "de maneira contemporânea", quer dizer, enquanto sucedia o fato, antes de toda confirmação e de toda convalidação pela parte dos acontecimentos da história [8]. Jesus diz a Tomé: "Creste porque me viste? Bem-aventurados os que não viram, e creram!" (Jo 20, 29): Maria é a primeira dos que creram ser ter visto.

São Paulo diz que Deus ama quem dá com alegria (2 Cor 9, 7) e Maria pronunciou seu "sim" a Deus com alegria. O verbo com o que Maria expressa seu consentimento, e que é traduzido como "fiat", ou "faça-se", no original, encontra-se no optativo (génoito), um modo verbal que em grego se usa para exprimir o desejo e inclusive a gozosa impaciência de que algo aconteça. Como se a Virgem dissesse: "Eu também desejo, com todo meu ser, o que Deus deseja; que se cumpra o que ele quer". Na verdade, como dizia Santa Agostinho, antes que em seu corpo, ela concebeu a Cristo em seu coração.

Mas Maria não disse "fiat", pois não falava latim, e nem "génoito", que é palavra grega. Que coisa disse então? Qual é a palavra que, no idioma falado por Maria, corresponde melhor a esta expressão? Quando queria dizer a Deus "sim, assim seja", um judeu dizia "amém". Se é lícito tentar remontar-se, com uma reflexão de fé, à mesmíssima palavra, à palavra exata que saiu dos lábios de Maria, ou ao menos à palavra que existia na fonte judaica usada por Lucas, esta deve ser precisamente a palavra "amém". Acaso os salmos na Vulgata latina não terminavam com a expressão: "fiat, fiat"? O texto grego dos Setenta, neste caso, diz "génoito, génoito", e no original hebraico conhecido por Maria aparece "amém, amém".

Amém é uma palavra hebraica, cuja raiz significa solidez, certeza; era utilizada na liturgia como resposta de fé à Palavra de Deus. Com o amém se reconhece o que nos foi dito com uma palavra firme, estável, válida e vinculante. Sua tradição exata, quando é uma resposta à Palavra de Deus, é esta: "Assim é e que assim seja". Indica fé e obediência ao mesmo tempo; reconhece que o que Deus diz é verdade e se submete. É dizer "sim" a Deus. Neste sentido, aparece nos próprios lábios de Jesus. "Sim, amém, Pai, pois assim foi do teu agrado..." (Mt 11, 26). É mais, Ele é o Amém personificado: "Assim fala o Amém..." (Ap 3, 14) e, através dele, qualquer outro "amém" de fé pronunciado na terra já se eleva a Deus (cf Cor 1, 20). Também Maria, depois do Filho, é o amém a Deus feito pessoa.

A fé de Maria é portanto um ato de amor e de docilidade, livre, ainda que suscitado por Deus, misterioso como misterioso é cada vez o encontro entre a graça e a liberdade. Esta é a verdadeira grandeza pessoal de Maria, sua bem-aventurança, confirmada pelo próprio Cristo: "Feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram" (Lc 11, 27), diz uma mulher no Evangelho. A mulher proclama que Maria é bem-aventurada porque levou Jesus; Isabel a proclama beata porque acreditou; a mulher proclama como uma bem-aventurança levar Jesus no seio, Jesus proclama bem-aventurado que o leva no coração: "Bem-aventurados os que ouvem a Palavra de Deus e a guardam", responde Jesus. Deste modo, ajuda aquela mulher e a todos nós a compreender onde está a grandeza pessoal de sua Mãe. Quem "guardava" melhor as palavras de Deus que Maria, de quem a Escritura diz em duas ocasiões que "guardava todas estas coisas, e as meditava em seu coração"? (cf Lc 2 19, 51).

Não deveríamos terminar nossa contemplação da fé de Maria com a impressão de que Maria acreditou uma vez e nada mais em sua vida; que só se deu um grande ato de fé na vida da Virgem. Quantas vezes, depois da Anunciação, Maria foi martirizada pelo aparente contraste de sua situação com tudo o que estava escrito e conhecia sobre a vontade de Deus, no Antigo Testamento, e sobre a própria figura do Messias! O Concílio Vaticano II nos ofereceu um grande presente ao afirmar que também Maria caminhou na fé, e mais, avançou na fé, quer dizer, cresceu e se aperfeiçoou nela [12].

3. Acreditemos também nós!

Passemos agora de Maria ao sacerdote. Santo Agostinho escreveu: "Maria acreditou e nela o que acreditou se cumpriu. Acreditemos também nós para que o que se cumpriu nela possamos também nós aproveitar" [13]. Acreditemos também nós! Que a contemplação da fé de Maria nos leve a renovar perante todos o ato de fé e abandono a Deus.

Todos devem e podem imitar Maria em sua fé, mas de modo muito especial deve fazê-lo o sacerdote. "Meu justo diz Deus viverá pela fé (cf Habacuc 2, 4; Rm 1, 17): isto se aplica, em especial, ao sacerdote. Ele é o homem da fé. A fé é o que determina, por assim dizer, seu "peso específico" e a eficácia de seu ministério.

O que os fiéis captam imediatamente em um sacerdote, em um pastor, é se "crê", se crê no que diz e no que celebra. Quem busca no sacerdote antes de tudo a Deus, se dá conta em seguida; que não busca nele a Deus, pode ser facilmente enganado e induzir a engano o próprio sacerdote, fazendo que se sinta importante, brilhante, ao ritmo da moda, quando na realidade é "bronze que soa e címbalo que retine".

Inclusive quem não crê se aproxima do sacerdote com um espírito de busca, entende em seguida a diferença. O que o colocará saudavelmente em crise não são em geral as mais cultas discussões sobre a fé, mas encontrar-se perante alguém que crê verdadeiramente com todo seu ser. A fé é contagiosa. Alguém não se contagia só escutando falar dos vírus ou estudando-os, mas entrando em contato com ele: assim é a fé.

Às vezes, sofre-se e inclusive se lamenta em oração com Deus, porque as pessoas abandonam a Igreja, não saem do pecado, porque falamos, falamos... e não acontece nada. Um dia, os apóstolos tentaram expulsar o demônio de um pobre jovem, mas sem conseguir. Depois de Jesus em pessoa expulsar o demônio do jovem, aproximaram-se de Jesus, retirando-se de lado, e perguntaram: "Por que nós não conseguimos expulsar o demônio?" Ele respondeu: "Por causa da fraqueza de vossa fé" (Mt 17, 19-20).

São Boaventura relata como um dia, enquanto estava no monte da Verna, lhe veio à mente o que dizem os santos Padres, quer dizer, que a alma devota, pela graça do Espírito Santo e a força do Altíssimo, pode espiritualmente conceber pela fé o bendito Verbo do Pai, dá-lo à luz, dar-lhe nome, buscá-lo e adorá-lo com os Magos e finalmente apresentá-lo felizmente a Deus Pai em seu templo. Escreveu então um opúsculo intitulado "As cinco festas do Menino Jesus", para mostrar como o cristão pode reviver em si cada um destes cinco momentos da vida de Jesus. Limito-me ao que Boaventura diz das duas primeiras festas, a concepção e o nascimento, aplicando-o em particular ao sacerdote.

O sacerdote concebe Jesus quando, descontente da vida que leva, estimulado por santas inspirações e acendendo-se de santo ardor, desapegando-se firmemente de seus velhos costumes e afetos, fica como fecundado espiritualmente pela graça do Espírito Santo e concebe o propósito de uma vida nova.

Uma vez concebido, o bendito Filho de Deus nasce no coração do sacerdote, quando, após ter feito um sadio discernimento, pedido um conselho oportuno, invocado a ajuda de Deus, põe imediatamente por obra seu santo propósito, começando a realizar o que desde tempos estava amadurecendo, mas que tinha sempre deixado por medo de não ser capaz.

Este propósito de vida nova deve, no entanto, traduzir-se em seguida, sem vacilações, em algo concreto, em uma mudança, possivelmente também externa e visível, em nossa vida e em nossos costumes. Se o propósito não se realiza, Jesus é concebido, mas não é dado à luz. Será um de tantos abortos espirituais dos que infelizmente está cheio o mundo das almas.

Há duas brevíssimas palavras que Maria pronunciou no momento da Anunciação e que o sacerdote pronuncia no momento de sua ordenação: "Aqui estou!" e "Amém", ou "Sim". Recordo o momento quando estava perante o altar para a ordenação com uma dezena de companheiros. Em um determinado momento, pronunciou-se meu nome, e eu respondi emocionadíssimo: "Aqui estou".

Ao longo do rito, foram-nos dirigidas algumas perguntas: "Queres exercer o ministério sacerdotal por toda vida?", "Queres realizar digna e fielmente o ministério da palavra na pregação?", "Queres celebrar com devoção e fidelidade os mistérios de Cristo?". A cada pergunta, respondemos: "Sim, quero!".

A renovação espiritual do sacerdócio católico, desejada pelo Santo Padre, será proporcional ao impulso com que cada um de nós, sacerdotes ou bispos da Igreja, formos capazes de pronunciar de novo um gozoso "Aqui estou!" e "Sim, quero!", fazendo reviver a unção recebida na ordenação. Jesus entrou no mundo dizendo: "eis que eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade" (Hb 10, 7). Nós o acolhemos, neste Natal, com as mesmas palavras: "eis que eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade!"


* * *

Notas [originais em italiano]

1) Ps. Epifanio, Omelia in lode della Vergine (PG 43, 497)

2) Cf. su tutta la questione, R. Laurentin, Maria ecclesia sacerdotium, Parigini 1952; art. "Sacerdoti" in Nuovo Dizionario di Mariologia, Ed. Paoline 1985, 1231-1242.

3) Paolo VI, Udienza generale del 7, Ott. 1964.

4) S. Agostino, Discorsi 72 A, 8 (Misc. Agost. I, p.164).

5) Lumen gentium, 64.

6) Clemente Alessandrino, Pedagogo, I, 6.

7) B. Isacco della Stella, Discorsi 51 (PL 194, 1863).

8) Tertulliano, De carne Christi, 20-21 (CCL 2, 910 ss.).

9) S. Agostino, Discorsi 215, 4 (PL 38,1074).

10) C. Carretto, Beata te che hai creduto, Ed. Paoline 1986, pp. 9 ss.

11) E. De Luca, In nome della madre, Feltrinelli, Milano 2006, pp. 66 ss.

12) Lumen gentium, 58.

13) S. Agostino, Discorsi, 215,4 (PL 38, 1074).

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Pregação do Advento II




Pregador do Papa: "Ministros da nova aliança do Espírito"


1. A serviço do Espírito


Na pregação passada, havíamos comentado a definição que Paulo dá dos sacerdotes como "servos de Cristo". Na Segunda Carta aos Coríntios, encontra-se uma afirmação aparentemente diferente. Ele escreve: "que nos tornou capazes de exercer o ministério da aliança nova, não da letra, mas do Espírito. A letra mata, o Espírito é que dá a vida. Se o ministério da morte, gravado em pedras com letras, foi cercado de tanta glória que os israelitas não podiam fitar o rosto de Moisés, por causa do seu fulgor, ainda que passageiro, quanto mais glorioso não será o ministério do Espírito?" (2 Cor 3, 6-8).


Paulo define a si mesmo e seus colaboradores como "ministros do Espírito" e o ministério apostólico como um "serviço do Espírito". A comparação com Moisés e com o culto da Antiga Aliança não deixa nenhuma dúvida de que nessa passagem, como em muitas outras dessa mesma carta, ele fala do papel dos guias da comunidade cristã, ou seja, dos apóstolos e seus colaboradores.


Quem conhece a relação que existe para Paulo entre Cristo e o Espírito sabe que não há contradição entre ser servos de Cristo e ministros do Espírito, mas uma perfeita continuidade. O Espírito de que se fala aqui é de fato o Espírito de Cristo. O próprio Jesus explica o papel do Paráclito a respeito dele mesmo, quando diz aos apóstolos: ele tomará do meu e vos anunciará, ele vos fará recordar aquilo que eu disse, ele dará testemunho de mim...


A definição completa do ministério apostólico e sacerdotal é: servos de Cristo no Espírito Santo. O Espírito indica a qualidade ou a natureza de nosso serviço, que é um serviço "espiritual" no sentido forte do termo; não só no sentido de que se relaciona com o espírito do homem, sua alma, mas no sentido de que tem por sujeito, ou "agente principal", como dizia Paulo VI, o Espírito Santo. Santo Irineu diz que o Espírito Santo é "a nossa própria comunhão com Cristo" [1].


Logo acima, na mesma Segunda Carta aos Coríntios, o apóstolo havia ilustrado a ação do Espírito Santo nos ministros da nova aliança com o símbolo da unção: "É Deus que nos confirma, a nós e a vós, em nossa adesão a Cristo, como também é Deus que nos ungiu. Foi ele que imprimiu em nós a sua marca e nos deu como garantia o Espírito derramado em nossos corações" (2 Cor 1, 21 s.).


Santo Atanásio comenta sobre este texto: "o Espírito é chamado para ungir e selar... A unção é o sopro do Filho para que todo aquele que possui o Espírito possa dizer: 'nós somos o perfume de Cristo'. O selo é o Cristo, de modo que aquele que é marcado pelo selo possa assumir a forma de Cristo" [2]. Quanto à unção, o Espírito Santo nos transmite o perfume de Cristo; quanto ao selo, a sua forma ou imagem. Portanto, não há dicotomia entre o serviço de Cristo e o serviço do Espírito, mas unidade profunda.


Todos os cristãos são "ungido"; o próprio nome não significa outra coisa que isso: "ungido", à semelhança de Cristo, que é o Ungido por excelência (cf. 1 Jo 2, 20. 27). Mas Paulo está falando aqui de sua obra e de Timóteo ("nós") na comunidade ("vós"); é evidente que se refere especificamente à unção e ao selo do Espírito recebidos no momento de ser consagrados ao ministério apostólico, para Timóteo mediante a imposição das mãos do Apóstolo (cf. 2 Tim 1, 6).


Temos de redescobrir a importância da unção do Espírito, porque nela, creio, está contido o segredo da eficácia do ministério episcopal e presbiteral. Os sacerdotes são essencialmente consagrados, isto é, ungidos. "Nosso Senhor Jesus lê-se na Presbyterorum ordinis que o Pai santificou e enviou ao mundo (Jo 10, 36), tornou participante todo o seu Corpo místico da unção do Espírito com que Ele mesmo tinha sido ungido". O mesmo decreto conciliar lança luz sobre a especificidade da unção conferida pelo sacramento da Ordem. Por isso, diz, "os presbíteros ficam assinalados com um caráter particular e, dessa maneira, configurados a Cristo sacerdote, de tal modo que possam agir em nome de Cristo cabeça" [3].


2. A Unção: figura, acontecimento e sacramento


A unção, como a Eucaristia e a Páscoa, é uma daquelas realidades que se fazem presentes em todas as fases da história da salvação. De fato, está presente no Antigo Testamento como figura, no Novo Testamento como acontecimento e no tempo da Igreja como sacramento. No nosso caso, a figura advém das várias unções praticadas no Antigo Testamento; o acontecimento é constituído pela unção de Cristo, o Messias, o Ungido, a quem todas as figuras tendiam como que ao seu cumprimento; o sacramento é representado por aquele conjunto de sinais sacramentais que provêm da unção como rito principal ou complementar.


No Antigo Testamento se fala em três tipos de unção: a unção real, a sacerdotal e a profética, isto é, a unção dos reis, dos sacerdotes e dos profetas, ainda que no caso dos profetas se trate de uma unção espiritual ou metafórica, sem a presença de um óleo material. Em cada uma destas três unções, é delineado um horizonte messiânico, ou seja, a expectativa de um rei, um sacerdote ou um profeta, que será o Ungido por antonomásia, o Messias


Junto com a investidura oficial e jurídica, pela qual o rei converte-se no Ungido do Senhor, a unção confere também, segundo a Bíblia, um poder interior, comporta uma transformação que vem de Deus e este poder, esta realidade vem cada vez mais identificados com o Espírito Santo. Ao ungir a Saul como rei, Samuel disse: "Não é o Senhor quem te ungiu como chefe de seu povo Israel? Tu governarás o povo do Senhor... Te invadirá então o Espírito do Senhor, entrarás em transe com eles e ficarás mudado em outro homem" (1 Samuel 10, 1-6).


O Novo Testamento não hesita em apresentar Jesus como o Ungido de Deus, no qual todas as unções do passado encontraram seu cumprimento. O título de Messias, Cristo, que significa justamente Ungido, é a prova mais clara disso.


O momento ou evento histórico que remete a essa conclusão é o batismo de Jesus no Jordão. O efeito desta unção é o Espírito Santo: "Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder" (At 10, 38); o próprio Jesus, após seu batismo, declarará na sinagoga de Nazaré: "O Espírito do Senhor está sobre mim, pois me ungiu (Lc 4, 18).


Jesus era certamente pleno do Espírito Santo desde o momento da Encarnação, mas tratava-se de uma graça pessoal, ligada à união hipostática, e portanto incomunicável. Ora, na unção, recebe aquela plenitude do Espírito Santo que, como cabeça, poderá transmitir para o corpo. A Igreja vive desta graça capital (gratia capitis).


Os efeitos da tríplice unção real, profética e sacerdotal são grandiosos e imediatos no ministério de Jesus. Pela força da unção real, Ele abate o reino de Satanás e instaura o Reino de Deus: "se expulso, no entanto, pelo Espírito de Deus, é porque já chegou até vós o Reino de Deus" (Mt 12, 28); pela força da unção profética, "anuncia a boa nova aos pobres"; e pela força da unção sacerdotal, oferece orações e lágrimas durante sua vida terrena e, ao fim, oferece a si mesmo na cruz.


Após ter estado presente no Antigo Testamento como figura e no Noto Testamento como acontecimento, a unção está presente agora na Igreja como sacramento. O sacramento toma da figura o sinal e do acontecimento o significado; toma das unções do Antigo Testamento o elemento o óleo, o crisma ou unguento perfumado e de Cristo a eficácia salvífica. Cristo nunca foi ungido com óleo físico (à parte da unção de Betânia), nem nunca ungiu a ninguém com óleo físico. Nele o símbolo foi substituído pela realidade, pelo "óleo da alegria" que é o Espírito Santo.


Mais que um sacramento isolado, a unção está presente na Igreja como um conjunto de ritos sacramentais. Como sacramentos em si mesmos, temos a confirmação (que através de todas as transformações sofridas remete, como testemunha seu nome, ao rito antigo da unção com o crisma) e a unção dos enfermos; como parte de outros sacramentos, temos a unção batismal e a unção nos sacramento da Ordem. Na unção crismal que se segue ao batismo, faz-se menção explícita à tríplice unção de Cristo: "Ele próprio vos consagra com o crisma da salvação; inseridos em Cristo sacerdote, rei e profeta, sejais sempre membro de Seu corpo para a vida eterna".


De todas estas unções, interessa-nos neste momento a que acompanha ao momento em que se confere a Ordem sagrada. No momento em que unge com o sagrado crisma as palmas de cada ordenando ajoelhado ante ele, o bispo pronuncia estas palavras: "O Senhor Jesus Cristo, que o Pai consagrou no Espírito Santo, e revestiu de poder, te guarde para a santificação de seu povo e para oferecer o sacrifício".


3. A unção espiritual


Existe um risco comum a todos os sacramentos: o de ficar no aspecto ritualístico e canônico da ordenação, em sua validade e legitimidade, sem dar a devida importância ao res sacramenti, ao efeito espiritual, à graça própria do sacramento, no caso o fruto da unção na vida do sacerdote. A unção sacramental nos habilita a cumprir certas tarefas sacras, como orientar, pregar, instruir; nos dá, por assim dizer, a autorização para fazer certas coisas, não necessariamente a autoridade para fazê-las; assegura a sucessão apostólica, mas não necessariamente o sucesso apostólico!


A unção sacramental, com o caráter indelével (o "selo") que imprime no sacerdote, é um recurso ao qual podemos recorrer a qualquer momento, sempre que sentirmos necessidade, que podemos, por assim dizer, ativar a qualquer momento de nosso ministério. Também aqui atua aquilo que a teologia chama de "revivescência" do sacramento. O sacramento, uma vez recebido no passado, reviviscit, volta a reviver e a conferir sua graça: em casos extremos, porque remove o obstáculo do pecado (o obex), em outros casos porque remove o verniz do costume, intensificando a fé no sacramento. É como se fosse um frasco de perfume; pode-se mantê-lo no bolso ou nas mãos indefinidamente, mas enquanto não o abrirmos, o perfume não se manifesta, é como se não estivesse lá.


Como nasceu essa ideia de uma unção atual? Um passo importante foi dado, mais uma vez, por Agostinho. Ele interpreta o texto da primeira Carta de João: "Quanto a vós, a unção que recebestes de Jesus permanece convosco..." (1 Jo 2, 27), no sentido de uma unção perene, por meio da qual o Espírito Santo, professor interior, permite-nos compreender interiormente aquilo que ouvimos de fora. É atribuída a ele a expressão "unção espiritual", spiritalis unctio, que consta no hino Veni Creator [4]. São Gregório Magno ajudou, entre muitas outras coisas, a popularizar, ao longo da Idade Média, esse ponto de vista agostiniano [5].


Uma nova fase no desenvolvimento do tema da unção se inicia com São Bernardo e São Boaventura. Com eles, se define o novo sentido, de caráter espiritual, da unção, já não tanto relacionado ao tema do conhecimento da verdade, mas sobre a experiência da realidade divina. Comentando o Cântico dos Cânticos, São Bernardo diz: "um tal cântico, só a unção ensina, só a experiência nos faz compreender" [6]. São Boaventura identifica a unção com a devoção, concebida por ele como "um suave sentimento de amor a Deus despertado pela lembrança das bênçãos de Cristo" [7]. Esta não depende da natureza ou do conhecimento, nem das palavras ou dos livros, mas "do dom de Deus que é o Espírito Santo" [8].


Nos dias de hoje, são cada vez mais comuns as expressões ungido e unção (anointed, anointing) para referir-se à ação de uma pessoa, à qualidade de um discurso ou pregação, mas com um sentido diferente. Na linguagem tradicional, a palavra unção sugere, como vimos, uma ideia de suavidade e doçura, a ponto de dar lugar, em seu uso profano, a acepções pejorativas, "untuoso" como "bajulador", referindo-se a uma pessoa "desagradavelmente cerimoniosa e servil".


Em seu uso moderno, mais próximo do bíblico, a palavra sugere muito mais uma ideia de poder e de força de persuasão. Um sermão carregado de unção é um sermão em que percebemos, por assim dizer, o entusiasmo provindo do Espírito; um discurso que abala, que fala ao coração das pessoas. Trata-se de um componente genuinamente bíblico do termo, presente por exemplo no texto dos Atos, onde se diz que Jesus "foi ungido com o Espírito Santo e com poder" (At 10, 38).


A unção, nesse sentido, parece mais um ato do que estado. É algo que a pessoa não possui de maneira constante, mas que se "investe" sobre ela no momento do exercício do ministério ou da oração.


Se a unção se dá pela presença do Espírito, sendo um dom dele proveniente, o que podemos fazer para obtê-la? Antes de mais nada, orar. Há uma promessa explícita de Jesus: "Pai do céu dará o Espírito Santo aos que lhe pedirem!" (Lucas 11:13). Cumpre pois, também a nós, quebrar o vaso de alabastro, como a pecadora na casa de Simão. O vaso é o nosso eu, e talvez nosso intelectualismo árido. Quebrá-lo significa renunciar a nós mesmos, ceder a Deus, com um ato explícito, as rédeas de nossa vida. Deus não pode doar Seu Espírito a quem não se doa inteiramente a Ele.


4. Como obter a unção do Espírito


Apliquemos à vida do sacerdote este rico conteúdo bíblico e teológico relacionado ao tema da unção. São Basílio diz que o Espírito Santo "estava sempre presente na vida do Senhor, tornando-se a unção e o companheiro inseparável", de modo que "toda atividade de Cristo envolve-se no Espírito" [9]. Receber a unção significa, portanto, receber o Espírito Santo como "companheiro inseparável" na vida, fazer tudo "no Espírito", à sua presença, com sua guia. Isso implica uma certa passividade, docilidade, ou como diz Paulo, um "deixar-se guiar pelo Espírito" (Gl 5, 18).


Tudo isso se traduz, externamente, ora em suavidade, calma, paz, doçura, devoção, comoção, ora em autoridade, força, poder, credibilidade, dependendo das circunstâncias, do caráter de cada um e também da atividade que exerce. O exemplo de vida é Jesus, que, movido pelo Espírito, manifesta-se como manso e humilde de coração, mas também, quando necessário, pleno de autoridade sobrenatural. É uma condição caracterizada por um certo brilho interior, que torna fácil e credível no fazer as coisas. Um pouco de como é a "forma" para o atleta e a inspiração para o poeta: um estado em que se pode dar o melhor de si.


Nós, sacerdotes, precisamos nos acostumar a buscar a unção do Espírito antes de desempenhar uma ação importante no serviço do Reino: uma decisão a tomar, uma nomeação a fazer, um documento a escrever, uma comissão a presidir, uma pregação a preparar. Eu aprendi de maneira dura. Encontrei-me, por vezes, ter de falar a um público amplo, em uma língua estrangeira, muitas vezes tendo acabado de chegar de uma longa viagem. Escuridão total. A língua em que deveria falar parecia-me escapar, a incapacidade de me concentrar sobre um esquema, um tema. E a música de abertura estava prestes a terminar... Então me lembrei da unção e logo fiz uma breve oração: "Pai, em nome de Cristo, peço a unção do Espírito!"


Às vezes, o efeito é imediato. Experimenta-se quase fisicamente a unção vindo sobre si. Uma certa comoção atravessa o corpo, ilumina a mente, serenidade na alma; desaparece a fadiga, o nervosismo, cada medo e cada timidez; experimenta-se algo da própria calma e autoridade de Deus.


Muitas das minhas orações, como imagino com todo cristão, não foram escutadas, no entanto, quase nunca fica sem ser escutada esta oração pela unção. Parece que diante de Deus, temos uma espécie de direito de reclamá-la. Mais tarde, especulei um pouco sobre essa possibilidade. Por exemplo, se devo falar de Jesus Cristo, faço uma aliança secreta com Deus Pai, sem fazer Jesus saber, e digo: "Pai, devo falar de teu Filho Jesus, que tanto amas: dê-me a unção de Seu Espírito para alcançar o coração das pessoas. Se eu tiver que falar de Deus, o Pai, o oposto: faço um acordo secreto com Jesus... A doutrina da Trindade é maravilhoso também para isso.


5. Ungido para espalhar no mundo o bom odor de Cristo


No mesmo contexto de 2 Coríntios, o apóstolo, sempre referindo-se ao ministério apostólico, desenvolve a metáfora da unção com o perfume, escreve: "Graças sejam dadas a Deus que nos faz sempre triunfar em Cristo e que, por meio de nós, vai espalhando por toda a parte o perfume do seu conhecimento. De fato, nós somos o bom odor de Cristo para Deus" (2 Cor 2, 14-15).


Este deve ser o sacerdote: o perfume de Cristo no mundo! Mas o apóstolo nos adverte, acrescentando de imediato: "trazemos esse tesouro em vasos de barro" (2 Cor 4, 7). Sabemos muito bem, pela experiência dolorosa e humilhante recente, o que tudo isso significa. Jesus disse aos apóstolos: "Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal perde seu sabor, com que se salgará? Não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e pisado pelas pessoas." (Mt 5, 13). A verdade desta palavra de Cristo é dolorosa aos nossos olhos. Se o unguento perde o odor e se gasta, transforma-se no seu contrário, em mau cheiro e, em vez aproximar de Cristo, afasta dele. Em parte para responder a esta situação, o Santo Padre convocou este Ano Sacerdotal. O disse abertamente na carta de convocação: "há situações, nunca bastante deploradas, em que a Igreja sofre pela infidelidade de alguns de seus ministros. Nestes casos, é o mundo que sofre o escândalo e o abandono".


A carta do Papa não se limita a esta constatação; de fato, acrescenta: "O máximo que a Igreja pode recavar de tais casos não é tanto a acintosa revelação das fraquezas dos seus ministros, como sobretudo uma renovada e consoladora consciência da grandeza do dom de Deus, concretizado em figuras esplêndidas de generosos pastores, de religiosos inflamados de amor por Deus e pelas almas".


A revelação das fraquezas também deve ser feita para fazer justiça às vítimas e a Igreja agora o reconhece e a aplica da melhor forma que pode, mas deve fazer-se em outra sede e, em todo caso, não virá de lá o estímulo para uma renovação do ministério sacerdotal. Eu pensei neste ciclo de meditações sobre o sacerdócio precisamente como uma pequena contribuição na direção desejada pelo Santo Padre. Eu gostaria de deixar que o seráfico padre, São Francisco, falasse no meu lugar. Em um momento em que a situação moral do clero era sem comparação mais triste que a de hoje, em seu testamento, ele escreve: "O Senhor me deu e ainda me dá tanta fé nos sacerdotes que vivem segundo a forma da santa Igreja Romana, por causa de suas ordens, que, mesmo que me perseguissem, quero recorrer a eles. E se tivesse tanta sabedoria quanto teve Salomão e encontrasse míseros sacerdotes deste mundo, nas paróquias em que eles moram não quero pregar contra a vontade deles. E hei de respeitar, amar e honrar a eles e a todos os outros como a meus senhores. Nem quero olhar para o pecado deles porque neles reconheço o Filho de Deus e eles são os meus senhores. E procedo assim porque do mesmo altíssimo Filho de Deus nada enxergo corporalmente neste mundo senão o seu santíssimo corpo e sangue, que eles consagram e somente eles administram aos outros".


No texto citado no começo, Paulo fala da "glória" dos ministros da Nova Aliança no Espírito, imensamente mais elevada que a antiga. Esta glória não procede dos homens e não pode ser destruída pelos homens. O santo Cura de Ars difundia certamente ao seu redor o bom odor de Cristo e, por este motivo, as multidões iam a Ars; mais perto de nós, o Padre Pio de Pietrelcina difundia o odor de Cristo, às vezes inclusive com um perfume físico, como testemunham inúmeras pessoas dignas de fé. Muitos sacerdotes, ignorados pelo mundo, são em seu ambiente o bom odor de Cristo e do Evangelho. O "padre rural" de Bernanos tem muitos companheiros espalhados pelo mundo, na cidade e no campo.


O Pe. Lacordaire traçou um perfil do sacerdote católico, que hoje em dia pode parecer muito otimista e idealizado, mas voltar a encontrar o ideal e o entusiasmo pelo ministério sacerdotal é precisamente o que está faltando neste momento e, por esta razão, voltamos a escutar, ao concluir esta meditação: "Viver no meio do mundo sem nenhum desejo pelos próprios prazeres; ser membro de toda família, sem pertencer a nenhuma delas; compartilhar todo sofrimento; ficar à margem de todo segredo; curar toda ferida; ir todos os dias dos homens a Deus para oferecer-lhe sua devoção e sua oração, e voltar de Deus aos homens para levar-lhes seu perdão e sua esperança; ter um coração de ferro pela castidade e um coração de carne para a caridade; ensinar e perdoar, consolar e abençoar e ser abençoado para sempre. Ó Deus, que tipo de vida é esta? É a tua vida, sacerdote de Jesus Cristo! [10]


* * *


[Notas originais em italiano]


1) S. Ireneo, Adv. Haer. III, 24, 1.


2) S. Atanasio, Lettere a Serapione, III, 3 (PG 26, 628 s.).


3) PO, 1,2.


4) S. Agostino, Sulla prima lettera di Giovanni, 3,5 (PL 35, 2000); cf. 3, 12 (PL 35, 2004).


5) Cf. S. Agostino, Sulla prima lettera di Giovanni, 3,13 (PL 35, 2004 s.); cf. S. Gregorio Magno, Omelie sui Vangeli 30, 3 (PL 76, 1222).


6) S. Bernardo, Sul Cantico, I, 6, 11 (ed. Cistercense, I, Roma 1957, p.7).


7) S. Bonaventura, IV, d.23,a.1,q.1 (ed. Quaracchi, IV, p.589); Sermone III su S. Maria Maddalena (ed. Quaracchi, IX, p. 561).


8) Ibidem, VII, 5.


9) S. Basilio, Sullo Spirito Santo, XVI, 39 (PG 32, 140C).


10) H. Lacordaire, cit. da D.Rice, Shattered Vows, The Blackstaff Press, Belfast 1990, p.137.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Mensagens do Cardeal Prefeito para o Clero

CARTA AOS PRESBÍTEROS EM DEZEMBRO 2009.

Caros Presbíteros,

Na vida do Presbítero, a oração ocupa necessariamente um lugar central. Não é difícil de entender, porque a oração cultiva a intimidade do discípulo com seu Mestre, Jesus Cristo. Todos sabemos que, ao esvaecer-se a oração, debilita-se a fé e o ministério perde conteúdo e sentido. A consequência existencial para o Presbítero exprime-se em menor alegria e felicidade no ministério quotidiano. É como se o Presbítero, ao seguir os passos de Jesus, lado a lado com tantos outros, perdesse o passo no caminho, ficando sempre mais para trás e mais distante do Mestre, até perdê-Lo de vista no horizonte. A partir de então, caminha sem rumo e vacilante.

São João Crisóstomo, numa homilia, ao comentar a Primeira Carta de Paulo a Timóteo, adverte sabiamente: "O diabo joga-se contra o pastor [...]. Com efeito, se matar as ovelhas o rebanho diminui; ao invés, eliminando o pastor, destruirá o rebanho inteiro". O comentário faz pensar em muitas situações hodiernas. Crisóstomo admoesta que a diminuição dos pastores faz e fará diminuir sempre mais o número dos fiéis e das comunidades. Sem pastores, nossas comunidades serão destruídas!

Aqui, porém, desejo, antes de tudo, falar da necessária oração para que, como diria Crisóstomo, os pastores vençam o diabo e não pereçam. Em verdade, sem o alimento essencial da oração, o Presbítero adoece, o discípulo não encontra forças para seguir o Mestre, e assim morre por inanição. Em consequência, seu rebanho se dispersa e morre.

Realmente, cada Presbítero é, por definição, portador de uma referência essencial à comunidade eclesial. Ele é um discípulo muito especial de Jesus, que o chamou e, pelo sacramento da Ordem, o configurou a Si como Cabeça e Pastor da Igreja. Cristo é o único Pastor, mas quis fazer participar a Seu ministério os Doze e seus Sucessores, mediante os quais também os Presbíteros, ainda que em grau inferior, são feitos participantes deste sacramento, de tal forma que também eles participem, a seu modo próprio, do ministério de Cristo, Cabeça e Pastor. Isso comporta um laço essencial do Presbítero com a comunidade eclesial. Ele não pode omitir-se no que diz respeito a essa responsabilidade, dado que a comunidade sem pastor se desfaz. A exemplo de Moisés, deve permanecer de braços erguidos ao céu, em oração, para que o povo não pereça.

Por esta razão, para continuar fiel a Cristo e à comunidade, o Presbítero precisa ser homem de oração, homem que vive na intimidade do Senhor. Necessita, além disso, ser confortado pela oração da Igreja e de cada cristão. As ovelhas devem rezar por seu pastor! Mas, quando este se dá conta que sua própria vida de oração enfraquece, é hora de dirigir-se ao Espírito Santo e implorá-Lo com ânimo de pobre. O Espírito reacenderá o fogo em seu coração. Reacenderá a paixão e o encanto para com o Senhor. Este está sempre ali e deseja fazer a ceia com quem Lhe abre a porta.

É Ano Sacerdotal e, por isso, queremos orar, com perseverança e grande amor, pelos Presbíteros e com os Presbíteros. A propósito, a Congregação para o Clero, cada primeira Quinta Feira do mês, durante o Ano Sacerdotal, às 16 horas, celebra uma Hora eucarístico-mariana, na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, para os Sacerdotes e com os Sacerdotes. Conosco vem rezar muita gente, com alegria.

Caríssimos Presbíteros, aproxima-se o Natal de Jesus Cristo. Faço a todos vós os melhores e mais fraternos votos de Bom Natal e Feliz Ano de 2010. O Menino Deus, no presépio, convida-nos a renovar para com Ele aquela intimidade de amigos e discípulos, a fim de reenviar-nos como Seus anunciadores!

Cardeal Dom Cláudio Hummes

Arcebispo Emérito de São Paulo

Prefeito da Congregação para o Clero


domingo, 6 de dezembro de 2009

“SERVOS E AMIGOS DE JESUS CRISTO” Padre Raniero Cantalamessa

1. A fonte de todo sacerdócio
Na escolha do tema a ser proposto nestas pregações à Casa Pontifícia, busco sempre me guiar pelo momento de graça especial que a Igreja está vivendo. No ano passado, era a graça do Ano Paulino, este ano é a graça do Ano Sacerdotal, por cuja proclamação, Santo Padre, estamos profundamente gratos.
O Concílio Vaticano II dedicou ao tema do sacerdócio um documento inteiro, Presbyterorum ordinis; João Paulo II, em 1992, dirigiu a toda Igreja a exortação apostólica pós-sinodal Pastores dabo vobis, sobre a formação dos sacerdotes nas circunstâncias atuais; o atual Sumo Pontífice, neste Ano Sacerdotal, traçou um breve mas intenso perfil do sacerdote, à luz a vida do Santo Cura d'Ars. Isso para não falar das intervenções de cada bispo sobre o tema, e também dos livros escritos sobre a figura e missão do sacerdote no século recém-terminado, alguns dos quais obras literárias de primeira grandeza.
Que se pode acrescentar a tudo isso no breve período de uma meditação? Encoraja-me o dizer com o qual um pregador iniciava sua fala: Non nova ut sciatis, sed vetera ut faciatis: “O importante não é conhecer coisas novas, mas colocar em prática o que sabe”. Renuncio então a qualquer tentativa de síntese doutrinal, de apresentação global ou perfil ideal sobre o sacerdote (não teria tempo nem capacidade) e busco, se possível, fazer vibrar o nosso coração sacerdotal, ao contato com algo da Palavra de Deus.
A palavra da Escritura que servirá como fio condutor é 1 Coríntios 4, 1, que muitos de nós recordamos na tradução latina da Vulgata: Sic nos existimet homo ut ministros Christi et dispensatores mysteriorum Dei: "Que as pessoas nos considerem como ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus”. A esta podemos ligar, em alguns aspectos, a definição da Carta aos Hebreus: “Cada sumo sacerdote, escolhido entre os homens, é constituído para o bem dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a Deus” (Hebreus 5, 1).
Essas frases têm a vantagem de reportar à raiz comum de cada sacerdócio, que é aquele estágio da revelação em que o ministério apostólico ainda não é diversificado, dando origem aos três graus canônicos de bispo, sacerdote e diácono, que, ao no que diz respeito às respectivas funções, ficará claro apenas com Santo Inácio de Antioquia, no início do século II. Essa raiz comum é realçada pelo Catecismo da Igreja Católica, que define a Ordem como “o sacramento graças ao qual a missão confiada por Cristo aos Apóstolos continua a ser exercida na Igreja, até ao fim dos tempos: é, portanto, o sacramento do ministério apostólico” (n. 1536).
É a este estágio inicial que tentaremos nos referir o quanto possível em nossa meditação, a fim de captar a essência do ministério sacerdotal. Neste Advento, levaremos em consideração apenas a primeira frase do Apóstolo: "Servos de Cristo". Se Deus quiser, prosseguiremos na Quaresma nossa reflexão, meditando sobre o que significa para um sacerdote ser "administradores dos mistérios de Deus" e quais são os mistérios que deve administrar.
"Servos de Cristo!" (com ponto exclamativo para indicar a grandeza, dignidade e beleza desse título): eis a palavra que deve tocar nossos corações nesta meditação e fazê-lo vibrar com santo orgulho. Não estamos falando dos serviços práticos ou ministeriais, como administrar a palavra e os sacramentos (disso, como comentei, falaremos na Quaresma); não falamos, em outras palavras, do serviço como ato, mas do serviço como estado, como vocação fundamental e como identidade do sacerdote, e falamos sobre isso na mesma direção e com o mesmo espírito de Paulo, que ao início de suas cartas apresenta-se como: "Paulo, servo de Jesus Cristo, apóstolo por vocação".
No passaporte invisível do sacerdote, aquele com o qual se apresenta cada dia diante de Deus e de seu povo, no campo “profissão”, dever-se-ia poder ler: "Servo de Jesus Cristo". Todos os cristãos são naturalmente servos de Cristo, mas o sacerdote o é a um título e modo todo particular, como todos os batizados são sacerdotes, mas o ministro ordenado o é a um título e modo diverso e superior.

2. Continuadores da obra de Cristo
O serviço essencial que o sacerdote é chamado a oferecer a Cristo e continuar sua obra no mundo: "Como o Pai me enviou, também eu vos envio" (Jo 20, 21). O Papa São Clemente, na sua famosa carta aos Coríntios, diz: "Cristo é enviado por Deus e os Apóstolos, por Cristo... Eles, pregando por toda parte nos campos e nas cidades, nomearam os seus primeiros sucessores, estando à prova do Espírito, para ser bispos e diáconos”. Cristo foi enviado pelo Pai; os apóstolos, por Cristo; os bispos, pelos apóstolos: é a primeira enunciação clara do princípio da sucessão apostólica.
Mas a palavra de Jesus não tem só um significado jurídico e formal. Não funda, em outras palavras, apenas o direito dos ministros ordenados de falar como "enviados" de Cristo; também indica o motivo e o conteúdo deste mandato, que é o mesmo pelo qual o Pai enviou o Filho ao mundo. E por que Deus enviou seu Filho ao mundo? Aqui também renunciamos a uma resposta global, completa, para o qual deveríamos ler todo o Evangelho; apenas algumas declarações programáticas de Jesus.
Diante de Pilatos, ele declarou solenemente: "Para isso vim ao mundo, para dar testemunho da verdade" (Jo 18, 37). Continuar a obra de Cristo comporta para o sacerdote dar testemunho da verdade, fazer brilhar a luz da verdade. Só temos de ter em conta o duplo sentido da palavra verdade, aletheia, em João. Oscila entre a realidade divina e o conhecimento da realidade divina, entre um significado ontológico ou objetivo e um gnosiológico ou subjetivo. A verdade é "a realidade eterna enquanto revelada aos homens, referente tanto à própria realidade como a sua revelação" [H. Dodd, L’interpretazione del Quarto Vangelo, Paideia, Brescia 1974, p. 227].
A interpretação tradicional tem assinalado a "verdade" especialmente no sentido de revelação e conhecimento da verdade, em outras palavras, como verdade dogmática. Esta tarefa é, sem dúvida, essencial. A Igreja, como um todo, a aborda através do magistério, dos concílios, dos teólogos e do sacerdote individualmente, pregando ao povo a "sã doutrina".
Mas não devemos esquecer o outro significado joanino de verdade: o da realidade conhecida, mais que conhecimento da realidade. Nesta luz, a tarefa da Igreja e do sacerdote individual não se limita a proclamar as verdades da fé, mas deve ajudar a fazer a experiência, a entrar em contato íntimo e pessoal com a realidade de Deus, através do Espírito Santo.
"A fé, escreve São Tomas de Aquino, não termina no enunciado, mas na coisa" (Fides non terminatur ad enuntiabile sed ad rem). Da mesma forma, os mestres da fé não podem se contentar a ensinar as verdades de fé, devem ajudar as pessoas a atingir a "coisa"; não apenas ter uma ideia de Deus, mas fazer a experiência d’Ele, segundo o sentido bíblico de conhecer, que é diferente, como se sabe, do sentido grego e filosófico.
Outra declaração programática é aquela que Jesus fala em frente a Nicodemos: “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. Essa frase deve ser lida à luz do que a precede: "De fato, Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3, 16). Jesus veio revelar aos homens a vontade salvífica do amor misericordioso do Pai. Toda sua pregação se resume na palavra dirigida aos discípulos na Última Ceia: “o Pai vos ama!” (Jo 16, 27).
Ser continuador no mundo da obra de Cristo significa fazer própria essa atitude fundamental para com o povo, mesmo os mais distantes. Não julgar, mas salvar. Não deve passar despercebido o trato humano sobre o qual insiste a Carta aos Hebreus ao delinear a figura de Cristo Sumo Sacerdote e de cada sacerdote: a simpatia, o senso de solidariedade, a compaixão para com as pessoas.
De Cristo é dito: "De fato, não temos um sumo sacerdote incapaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo, à nossa semelhança, sem todavia pecar”. Do sacerdote humano se afirma que “é tomado do meio do povo e representa o povo nas suas relações com Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados. Ele sabe ter compaixão dos que estão na ignorância e no erro, porque ele mesmo está cercado de fraqueza. Por isso, deve oferecer, tanto em favor de si mesmo como do povo, sacrifícios pelo pecado” (Hebreus 4, 15-5, 3).
É verdade que Jesus, nos Evangelhos, também se mostra severo, julga e condena, mas com que o faz? Não com as pessoas simples, que o seguiam e vinham escutá-lo, mas com os hipócritas, os auto-suficientes, os mestres e guias do povo. Jesus não era, como se diz de certos políticos, "forte com os fracos e fraco com os fortes". Muito pelo contrário!

3. Continuadores, não sucessores
Mas em que sentido podemos falar dos sacerdotes como continuadores da obra de Cristo? Em cada instituição humana, como era então o Império Romano e como são hoje as ordens religiosas e todas as empresas humanas, os sucessores continuam a obra, mas não a pessoa do fundador. Este, em ocasiões, é corrigido, superado e inclusive repudiado. Isso não acontece com a Igreja. Jesus não tem sucessores, pois não morreu; está vivo, “ressuscitado da morte, a morte já não tem poder sobre Ele”.
Qual é então a tarefa de seus ministros? A de representá-lo, quer dizer, fazê-lo presente, dar forma visível a sua presença invisível. Nisso consiste a dimensão profética do sacerdócio. Antes de Cristo, a profecia consistia essencialmente em anunciar uma salvação futura, “nos últimos dias”, depois d’Ele, consiste em revelar ao mundo a presença escondida de Cristo, em gritar como João Batista: “No meio de vós há alguém que não conheceis”. Um dia alguns gregos dirigiram-se ao apóstolo Felipe com esta pergunta: “Senhor, queremos ver Jesus” (João 12, 21); a mesma pergunta, mais ou menos implícita, leva no coração quem se aproxima hoje do sacerdote.
São Gregório de Nisa lançou uma famosa expressão, que normalmente se aplica à experiência dos místicos: “Sentimento de presença” (Gregorio Nisseno, Sul Cantico, XI, 5, 2 –PG 44, 1001– aisthesis parousias). O sentimento de presença é algo mais que a simples fé na presença de Cristo; é ter o sentimento vivo, a percepção quase física de sua presença como Ressuscitado. Se isso é próprio da mística, então quer dizer que todo sacerdote tem de ser um místico, ou pelo menos um “mistagogo”, aquele que introduz as pessoas no mistério de Deus e de Cristo, como levando-as pela mão.
A tarefa do sacerdote não é diferente, ainda que esteja subordinada, à que o Santo Padre apresentava como prioridade absoluta do sucessor de Pedro e de toda Igreja, na carta dirigida aos bispos, a 10 de março passado: “No nosso tempo em que a fé, em vastas zonas da terra, corre o perigo de apagar-se como uma chama que já não recebe alimento, a prioridade que está acima de todas é tornar Deus presente neste mundo e abrir aos homens o acesso a Deus. Não a um deus qualquer, mas àquele Deus que falou no Sinai; àquele Deus cujo rosto reconhecemos no amor levado até ao extremo (cf. Jo 13, 1) em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado... Conduzir os homens para Deus, para o Deus que fala na Bíblia: tal é a prioridade suprema e fundamental da Igreja e do Sucessor de Pedro neste tempo”.
4. Servos e amigos
Mas agora temos de dar um passo adiante em nossa reflexão. “Servos de Jesus Cristo”: este título nunca deveria ir sozinho; deve-se acompanhar sempre, ao menos no profundo do coração, de outro título: o de amigos!
A raiz comum de todos os ministérios ordenados que se perfilarão posteriormente é a eleição que um dia fez Jesus dos Doze; isso é o que da instituição sacerdotal se remonta até o Jesus histórico. A liturgia apresenta, é verdade, a instituição do sacerdócio na Quinta-Feira Santa, por causa da palavra que Jesus pronunciou depois da instituição da Eucaristia: “Fazei isto em memória de mim”. Mas esta frase também pressupõe a eleição dos Doze, sem contar que, se for tomada sozinha, justificaria o papel de sacrificador e de liturgo do sacerdote, mas não o de anunciador do Evangelho, que é da mesma forma fundamental.
Que disse naquela ocasião Jesus? Por que escolheu os Doze, depois de ter rezado durante toda a noite? “Instituiu Doze para que estivessem com ele, e para enviá-los a pregar” (Marcos 3, 14-15). Estar com Jesus e ir pregar: estar e ir, receber e dar: em poucas palavras, apresenta-se o essencial da tarefa dos colaboradores de Cristo. Estar “com” Jesus não significa apenas uma proximidade física; implica já toda a riqueza que Paulo encerrará na fórmula “em Cristo”, ou “com Cristo”. Significa compartilhar tudo de Jesus: sua vida itinerante, certamente, mas também seus pensamentos, seus objetivos, seu espírito. A palavra companheiro procede do latim medieval e significa quem tem em comum (con-) o pão (panis), que come o mesmo pão.
Nos discursos de adeus, Jesus dá um passo adiante, completando o título de companheiros com o de amigos: “Não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que seu amo faz; chamo-vos amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai, vos dei a conhecer” (João 15, 15).
Há algo comovedor nesta declaração de amor de Jesus. Sempre recordarei o momento em que recebi a graça, por um instante, de experimentar algo desta comoção. Em um encontro de oração, alguém abriu a Bíblia e leu esta passagem de João. A palavra “amigos” me tocou com uma profundidade nunca antes experimentada; removeu algo no profundo de meu ser, até o ponto de que durante o resto do dia repetia a mim mesmo, cheio de maravilha e incredulidade: “Chamou-me de amigo! Jesus de Nazaré, o Senhor, meu Deus! Sou seu amigo! E me parecia que com essa certeza era possível voar pelos ares e atravessar o fogo.
Quando fala do amor de Jesus Cristo, São Paulo sempre dá a impressão de que se comove: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (Romanos 8, 35), "me amou e se entregou por mim!" (Gálatas 2, 20). Tendemos a desconfiar da comoção e inclusive nos envergonharmos dela. Não sabemos a riqueza que perdemos. Jesus “se comoveu profundamente” e chorou ante a viúva de Naim (cf Lucas 7, 13) e ante as irmãs de Lázaro (cf João 11, 33-35). Um sacerdote capaz de comover-se quando fala do amor de Deus e do sofrimento de Cristo ou quando recebe a confidência de uma grande dor, convence mais que com agudas racionalizações. Comover-se não significa necessariamente começar a chorar; é algo que se percebe nos olhos, na voz. A Bíblia está cheia do pathos de Deus.

5. A alma de todo sacerdócio
Uma relação pessoal, cheia de confiança e de amizade com a pessoa de Jesus, é a alma de todo sacerdócio. Neste Ano Sacerdotal, voltei a ler o livro do abade Jean-Baptiste Chautard, A alma de todo apostolado", que fez tão bem e sacudiu tantas consciências nos anos anteriores ao Concílio. Em um momento em que se dava um grande entusiasmo pelas “obras paroquiais”: cinema, jogos, iniciativas sociais, círculos culturais, o autor voltava a centrar bruscamente a atenção sobre o problema, denunciando o perigo de um ativismo vazio. “Deus –escrevia– quer que Jesus seja a vida das obras”.
Não reduzia a importância das atividades pastorais, no entanto, afirmava que sem uma vida de união com Cristo, não eram mais que “muletas” ou, como as definia São Bernardo, “malditas ocupações”. Jesus disse a Pedro: “Simão, tu me amas? Apascenta minhas ovelhas”. A ação pastoral de todo ministro da Igreja, desde o Papa até o último sacerdote, não é mais que a expressão concreta do amor por Cristo. “Tu me amas? Então apascenta”. O amor por Jesus marca a diferença entre o sacerdote funcionário ou executivo e o sacerdote servo de Cristo e dispensador dos mistérios de Deus.
O livro do abade Chautard poderia ter o título “A alma de todo sacerdócio”, pois em toda a obra fala d’Ele como agente e responsável em primeira linha da pastoral da Igreja. Naquela época, o perigo ante o qual se tentava reagir era o chamado “americanismo”. O abade se remonta com frequência, de fato, à carta de Leão XIII Testem benevolentiae, que hava condenado essa "heresia".
Hoje esta heresia, se de heresia pode-se falar, já não só é “americana”, mas uma ameaça que, inclusive por causa da diminuição da proporção de sacerdotes, afeta o clero de toda Igreja: chama-se ativismo frenético. (Por outro lado, muitas das instâncias que procediam naquele tempo dos cristãos dos Estados Unidos, e em particular do movimento criado pelo servo de Deus Isaac Hecker, fundador dos Paulist Fathers, tachadas de "americanismo", por exemplo, a liberdade de consciência e a necessidade de um diálogo com o mundo moderno, não eram heresias, mas instâncias proféticas que o Concílio Vaticano II fará em parte suas).
O primeiro passo para fazer de Jesus a alma do próprio sacerdócio consiste em passar do personagem Jesus ao Jesus pessoa. O personagem é alguém “de” quem se pode falar com alegria, mas “a” quem ninguém pode dirigir-se e “com” quem ninguém pode falar. Pode-se falar de Alexandre Magno, de Júlio César, de Napoleão tudo o que se quiser, mas se alguém dissesse que fala com alguns deles, lhe mandariam direto para o psiquiatra. A pessoa, pelo contrário, é alguém com quem se pode falar e a quem se pode escutar. Quando Jesus não é mais que um conjunto de notícias, de dogmas ou de heresias, alguém do passado, uma memória, não uma presença, fica-se em um personagem. É necessário convencer-se de que está vivo e presente. É mais importante falar com ele que falar d’Ele.
Um dos aspectos mais bonitos da figura do Dom Camilo, de Giovanni Guareschi, tendo obviamente em conta o gênero literário, aprecia-se quando fala em voz alta com o Crucifixo sobretudo o que lhe sucede na paróquia. Se nos acostumássemos a fazer isso, com tanta espontaneidade, com nossas palavras, quanto mudaria em nossa vida sacerdotal! Nos daremos conta de que não falamos ao vazio, mas a alguém que está presente, que escuta e reponde, talvez não em voz alta como a Dom Camilo.

6. Em primeiro lugar, as "pedras grandes"
Assim como em Deus toda a obra exterior da criação emana de sua vida íntima, “do incessante fluxo de seu amor”, e assim como toda atividade de Cristo emana de seu diálogo ininterrupto com o Pai, do mesmo modo todas as obras do sacerdote devem ser prolongação de sua união com Cristo. “Como o Pai me enviou, assim vos envio”, também significa isto: “Eu vim ao mundo sem me separar do Pai, vocês vão ao mundo sem se separar de mim”.
Quando se interrompe este contato, acontece como em uma casa, quando acaba a energia e tudo pára e fica às escuras. Às vezes se escuta: como ficamos tranquilos rezando quando tantos necessitados reclamam nossa presença? Como não correr quando se está queimando a casa? É verdade, mas imaginemos o que aconteceria a uma equipe de bombeiros que fosse, com as sirenes ligadas, apagar um incêndio, e, ao chegar, se desse conta de que não tem uma gota de água. É o que acontece quando corremos a pregar ou a exercer outros ministérios vazios de oração e do Espírito Santo.
Li uma história que me parece que se aplica de maneira exemplar aos sacerdotes. Um dia, um ancião professor foi convidado como especialista para falar sobre o planejamento mais eficaz do próprio tempo aos executivos de grandes companhias norte-americanas. Decidiu fazer um experimento. De pé, tirou de sob a mesa um grande jarro de vidro vazio. Tomou depois uma dezena de pedras do tamanho de bolas de tênis, que depositou com cuidado, uma por uma, no jarro até preenchê-lo. Quando já não havia espaço para outras pedras, perguntou aos alunos: “acreditam que este jarro está cheio?”, e todos disseram que sim.
Agachou-se de novo e pegou uma caixa cheia de pequenas pedras as quais derramou no jarro. Depois, perguntou: “Agora está cheio?”. Com mais prudência, os alunos responderam: “talvez ainda não”. Então ele tomou um saco de areia, que derramou no jarro. “E agora?”, questionou. E eles, diretamente: “não”. Então o ancião pegou uma garrafa de água e derramou até encher o jarro.
“Qual é a grande verdade que nos mostra este experimento?”, perguntou. O mais atrevido respondeu: “Demonstra que, ainda nossa agenda esteja totalmente cheia, com algo de boa vontade sempre se pode acrescentar algum compromisso, algo mais por fazer”. “Não”, disse o professor. “O que demonstra o experimento é que se não se colocam no jarro em primeiro lugar as peças grandes, depois elas não podem entrar”. “Quais são as grandes peças, as prioridades de nossa vida? O importante é pôr estas grandes peças em primeiro lugar em nossa agenda”.
São Pedro indicou ode uma vez por todas quais são as grande peças, as prioridades absolutas, dos apóstolos e de seus sucessores, bispos e sacerdotes: “nós nos dedicaremos à oração e ao ministério da Palavra” (Atos 6, 4).
Nós, sacerdotes, mais que qualquer outro, estamos expostos ao perigo de sacrificar o importante pelo urgente. A oração, a preparação da homilia ou da missa, o estudo e a formação são coisas importantes, mas não urgentes; se se suspendem, aparentemente, não acaba o mundo, enquanto que há muitas coisas pequenas –um encontro, um telefonema, um trabalhinho material– que são urgentes. Deste modo, acaba-se suspendendo sistematicamente o importante para um “depois” que nunca chega.
Para um sacerdote, pôr em primeiro lugar no jarro as grandes peças pode significar concretamente começar o dia com um tempo de oração e de diálogo com Deus, de maneira que as atividades e os diferentes compromissos não acabem ocupando todo o espaço.
Concluo com uma oração do abade Chautard que se encontra no programa destas meditações: "Oh Deus, dê à Igreja muitos apóstolos, mas suscita em seu coração uma sede ardente de intimidade contigo e, ao mesmo tempo, um desejo de trabalhar pelo bem do próximo. Dê a todos uma atividade contemplativa e uma contemplação ativa”.
Assim seja.